domingo, 30 de novembro de 2008

Erre

Nascer é uma agressão.
Não basta.
É preciso ir contra e além:
fazer os canivetes da chuva
furarem os olhos do sol.
Saquear as torres de marfim,
tornar o sagrado souvenir
e colecionar risadas.
É preciso ser da tempestade,
braços abertos desprotegendo
o rosto, o corpo, o beijo.
Faça!
Mate o conforto!
E fuja irresponsável e inconseqüente
pelos sigilos da noite.
Fuja da burocracia, da rotina, da rima.
Erre a mão na receita da felicidade
e desande o bolo.
Adicione ódio ao bem querer,
inverta a direção do olhar,
ignore qualquer conselho, inclusive este.
Não sirva de exemplo, de modelo ou padrão.
Desrespeite a regra e insulte seu autor.
Não poupe, não se preserve.
Descarrile seu próprio trem,
é impreciso perseguir a eterna distância
até a linha do horizonte.
E lembre-se:
só quem se despede,
permanece.



Este poema está publicado na antologia Ponte de Versos - 8 anos, Editora Ibis Libris.
Os outros dois poemas meus que integram a antologia já foram postados neste blog:
"O final" (11/09/2008) e "Camada" (15/09/2008).

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Ponte de versos



Tenho a satisfação de ter três poemas inseridos nesta antologia.

domingo, 23 de novembro de 2008

Revirar

As pontas dos pés ainda não tocam o solo
enquanto desço a garganta do diabo.
Com as mãos reviro os sentimentos
até o novo caldo de sabor desconhecido,
temperado com especiarias da dor
e das descobertas.
Tomo posse das minhas perdas.
Emergirei revigorado.

No deeper meaning

somos dessa geração de ninguéns
que foram tudo
e somos um pouco.
geração xis de mil coisas
cruzadas e cortadas em fatias de desilusão,
mixadas em liquidificadores turbo.
somos cheios de referências
informações linkadas e nada faz sentido.
marca de fato acontecido, já feito errado.
mas ainda falta tanto!
a cada dia que passa eu
analiso tantos currículos e não vejo perspectivas.
somos demi secos
meio fúteis
gastamos o que não temos
compramos o que não precisamos
para impressionar quem não gostamos.
cuidamos do corpo, pele e cabelo,
lemos revistas, manuais de conquista
e bobagens de auto ajuda.
tentamos não ser céticos
e parecer sempre otimistas.
moramos sozinhos e vivemos sós,
o que são coisas distintas.
cozinhamos, viajamos,
usamos drogas socialmente
enquanto discutimos o último filme da moda
ou dançamos música eletrônica.
habitamos o narcísico mundo virtual,
entre celebridades e silicones
e guerreamos no mundo corporativo
armados em armanis, dolces & gabbanas.
claro que fazemos terapia
pra entender quem desejamos.
e não conseguimos.
mesmo depois de tantas experiências
ainda nos portamos como cinderelas frustradas
e atacamos pra nos defender de qualquer um
que possa ser amor.

domingo, 16 de novembro de 2008

Atonais

A canção para você
jamais será tocada.
Não há arranjo possível.
Acordes estão proibidos.
Oitavas são inatingíveis
e os compassos, imprevisíveis.

Harmonias não casam.
Embora uma nota chame
a outra com precisão
e volúpia,
são atonais.

Tenho mãos de músico
mas só toco dó
em meu próprio réquiem rock’n’roll.

Sua música jamais.

Antropofagia

Meu corpo jaz sobre lençóis amarrotados.
Ao lado da cama,
ela tranqüilamente pinta as unhas
com o meu sangue.
Para cada pedaço do meu corpo,
acha utilidade.
O coração, ela descarta.

O amor não serve

Vou fechar a fábrica de poemas,
melhor eu calar sobre você
antes que te ofenda
com a minha saudade.
O tanto que eu te quero
pode por tudo a perder.
E se eu perder você
terá sido de mim que me perdi.
O amor não serve
só para unir.
O amor não serve
para você vir.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ruas do seu corpo

Seria legal você não usar nada por baixo,
para que minhas mãos tenham livre acesso
a todas as ruas do seu corpo,
todos os becos quase escondidos,
sem gatos sobre o muro
ou saxofonistas à meia-noite.
Todas as ruas do seu corpo livres
para o passeio das mãos,
o incêndio das bocas,
a revelação do olhar.
Não são ruas que apenas atravesso,
não são apenas vias de acesso.
Permaneço nelas, são meu lar.
Minha mão sobe por suas coxas
levantando seu vestido
até chegar aos lábios.

Caramelo

Em você habita
a genialidade do crime
quase perfeito.
Em você se encontram
na medida exata
o segredo e a revelação.
Luzes ofuscantes cegam
tanto quanto a escuridão.
Eu te descubro à luz de velas,
o amarelo e o negro.
O caramelo.

A outra face

Talvez sim,
eu tenha raiva
no dia do fim.
Mas se chegar o fim,
o dia da raiva
não nasce.
Entre tantas possibilidades,
a raiva não é minha favorita.
Como poderia,
se o amor supera tudo?
Quero que seja feliz,
com duas doses de veneno:
a minha boa lembrança
e a esperança triste do que poderíamos ter sido.
Dor será a minha escolhida.
É a outra face do amor.