domingo, 28 de setembro de 2008

Prato feito

Na terceira prateleira,
ao lado da sua sobremesa,
você me encontra.
Não é nenhuma surpresa,
estou na mesma geladeira
onde você me colocou.
Espero você abrir a porta,
descongelar e me comer.
Não precisa avisar
quando vai ser,
é até melhor me pegar
de repente.
Na verdade, eu já vou
estar bem quente,
pronto pra tua boca, língua e dente.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Enfim, um poema útil

Te quero à mão como café
cigarro
água
uísque caubói

Te quero à mão como gasolina
chave de roda
macaco
triângulo

Te quero à mão como aspirina
esparadrapo
preservativo
absorvente

Te quero à mão como lanterna
telefone
controle remoto
Polaroid

Te quero à mão como trocados
papel e caneta
agulha e linha
guarda-chuva

Te quero à mão como táxi
bombeiro
polícia
ambulância

Te quero à mão como amante.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Indo

Use o gerúndio para me abandonar.
Não suportaria único e súbito golpe.
Faça cortes lentos e mornos
e avance em passos estudados
como se me seduzisse
ao avesso.

Acenda minha solidão à luz de velas.
Encha minhas taças não mais até a boca.
Elas ainda estarão meio cheias
e eu vou sorrir ilusões perdidas.
Deixe a distância pegar intimidade
até deitar-se em nosso sofá
e fumar em nossa cama.

Eu vou me acostumar a sentir
que seu corpo não é mais meu.
Por mais que eu mova mundos,
teus olhos não me querem mais.
Faça ser outono.
Eu preciso de tempo para entender
que suas razões estão acima da razão,
do bem e do mal.


Seja o que sempre foi até o fim:
feche a porta suavemente ao sair.
Um dia, vou abrir as cortinas da sala,
deixar o sol entrar como se marcasse o reinício.
E direi: eu estou bem, eu vou indo.

sábado, 20 de setembro de 2008

Pós-moderno

Meu corpo é o templo;
minha incoerência, a religião;
Deus mora em mim,
mas não existe.
Exibo-me, logo
existo
na televisão.

Não há credo, causa ou pátria
que me façam levantar.
Eu não ligo pra você
é a resposta
para o que não lhe ouvi perguntar.
Estou muito ocupado agora
ornamentando meu umbigo.
Faço por mim e não para você
e não quero nada diferente.
Sem dramas ou culpas,
permaneço dignamente impassível.

Quando o tempo atingir com o passado
o meu templo,
pularei do alto do meu ego
numa piscina rasa de espelhos.
Não entrarei numa história
maior que trinta segundos.

Memória das árvores

Ilha Grande. Foto: Leandro Wirz


Tenho tudo gravado na memória das árvores.
Desde os banhos ao ar livre no quintal,
as corridas ao redor da velha mangueira,
os aromas do jasmim,
até tua nudez sem culpas,
os rituais de provocação,
o cheiro do teu corpo suado.
Estava tudo guardado nos grossos troncos marrons,
no espesso verde, no sereno, no silêncio.
Então teus olhos puxados rasgaram a luz
como estiletes talhando a madeira
fazendo escorrer a seiva.
O que há de mais puro
que o desejo,
que o pecado?


Ao fim da estação, as amendoeiras
jogam as páginas da história ao chão
e qualquer passante vulgar pisa.
Meu corpo agora é assim. Tapete.
E os inevitáveis amores errados foram
aos poucos puindo seus fios, puindo, puindo.
Outono é minha estação favorita.
Está chegando o meu tempo.
Tudo bem. Está tudo guardado na memória das árvores.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Camada

No outono das horas,
as palavras vêm
forrar o chão do corpo.
E este corpo ganha tuas mãos cálidas
e as cores aquecidas dos teus gestos
brotando árvores densas com galhos longos
no espaço em branco.
E como a água mansa corre
suave e contorna a pedra
você cobre viva os dias.
Vem diante dos meus olhos
em sorrisos e sóis
ser a camada sobre a pele
e a pele sobre o mais íntimo.

sábado, 13 de setembro de 2008

Ela não mora mais aqui



Se amar é mudar a alma de casa,
preciso atualizar meu endereço.
Já está na palma da tua mão
o que te ofereço.
Já é onde pulsa meu coração.
Entregue e alheio
à minha vontade,
obedeço a teu corpo,
não mais ao meu.
Nenhuma dúvida, nem sinal
de arrependimento.
Nenhum lamento.
É a minha escolha
Amar é escolher.
_____________________________________
Esta é, para mim, a mais bela definição de amor:
"Amar é mudar a alma de casa", Mário Quintana

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Enquadramentos



Desenho formas doidas
e as fecho num quadrado
tenho idéias loucas
que guardo na cabeça
choro lágrimas sentidas
que prendo num soluço
crio frases soltas
que calo na boca.
Tenho risos escandalosos
contidos num sorriso,
explosões de raiva
trincada entre os dentes.
Rabisco poemas
em cadernos que perco.
Tenho grandes amores
guardados no peito
e amantes quentes
trancadas no armário.
Faço viagens inteiras
entre quatro paredes,
invento mundos todos
que trancafio no quarto,
vivo momentos felizes
limitados aos sonhos
e contemplo horizontes imensos
apenas pela janela.
Procuro portas para sair
mas só subo pelas paredes
e não as acho.
Não as acho.

As vozes

As paredes da minha casa
guardam silêncio enlouquecedor!
Só ouço vozes rememorando
suas mentiras e juras de amor.
Em qual de você devo acreditar?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O final

arte de Aline França sobre poema de Leandro Wirz



Rasgaremos nossas fotos
e cada um ficará com a metade
em que aparece.
Mas o que fazer com as imagens
gravadas nas retinas?
Não adianta nem furar os olhos.
Não ouviremos aplausos
quando cerrarmos as cortinas.
Talvez um silêncio agudo:
som de quem não tem chão.
Os discos a gente copia,
os livros a gente doa ou queima.
Mas o que fazer dos dias?
Amontoado de horas jocosas
rindo de passados não terminados.
O ócio é o pai do bem, não do mal.
Eu não gosto de luz natural
que invade a poeira da minha sala.
Eu tenho medo de janelas abertas.
Final é sempre algo feliz.
Eu vou ser!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Portrait in blue

Esta é uma compilação editada na Inglaterra, da qual participei com este poema.

Some may think that I am mad
when I'm just very sad,
probably a little bit crazy,
I am just a definite maybe.

Who knows exactly who I am,
my mom, my doc, my hard old man ?
Where am I supposed to be,
under your body, down on my knees ?

Can I look into your reckless eyes
and still find a trace of faith ?
I almost died when I hit you by surprise
in a battle of haze.

If I see you again would you be
really able to forgive me
over a carpet of autumn leaves
underneath your graceful arms ?
I'm so sick and tired of living
my life, can't find out its meaning.
Can't you see my walls are trembling
and I'm not strong enough to stop them?

I've got a devil inside now and he
never sleeps or hides his signs.
In my missing persons' gallery
your portrait always shines.

Shining blue.

Melhor do que eu




Comprei menino a ilusão
dos velhos:
o mundo se resolveria no Direito Romano.
Aprendi que é nas arenas, não nos tribunais.
Desprezo os medíocres santos,
a história é escrita com o talento admirável
dos crápulas.
Sou o pior,
sou único
e ninguém pode ser o que sou
melhor do que eu.
Transformo talheres em armas brancas,
gravetos em barcos,
trapos em velas.
Senhor, alcance-me se puder!
Nunca envelhecerei
para sentir remorsos
Jamais serei piada
no humor negro de Deus.

domingo, 7 de setembro de 2008

Meu grande amor



Quando te abracei
e olhei por cima do seu ombro
vi o meu futuro
despedaçado no chão
e chorei uma única lágrima
com um olhar fixo e patético.
O meu sonho era de vidro
e eu não sabia
até vê-lo estilhaçado
atrás do seu corpo.
O meu futuro estava todo ali
derramado como leite
sobre o qual não adianta chorar,
e eu não tinha a quem culpar
a não ser a mim mesmo.
Por instantes,
eu não quis parar de te abraçar,
mas engoli a lágrima
e te soltei,
talvez tarde demais,
meu grande amor,
minha própria desgraça.

Trajetória



Tinha uma chaga no peito,
uma vaga na vida.
Vagabundo
vagamundo
vagalume
de estrelas.

As manhãs


Dedico as noites
em que você me permite
a esquadrinhar cada
centímetro quadrado
do seu corpo.
Em seguida,
quando já raia o dia,
refaço o percurso
das mãos
com as sobras da memória.
Decupo cada cena
gravada na retina
com minúcias de ourives
que despreza o passar das horas.
E tremo outra vez
como se o mesmo vento
voltasse àquele lugar.
Quieto e distante
opero o milagre do tempo:
retorno ao preciso instante
em que seu corpo
inteiro e concentrado,
espalha pelo quarto
o amor que jamais sentira.
Todas as manhãs
eu retomo o mesmo vício.
A mesma virtude.

Engenharias


Geometrias frias
expostas no seu olhar
paredes de concreto geladas
erguem-se entre nós
mecânicas engrenagens que movem seus carinhos.
Só. Sem calor algum
Frio. cimento frio.
Química da morte,
negra e cinza,
estruturas vazias
fomos nós dois.
Circuitos em curto

Versos sobre


São versos sobre trocas de pele,
sobre trocas de alma,
versos de pânico, primeiro,
e depois da calma
de quem perde o medo
do lado escuro da vida
e é inteiro e sem segredos
como cabeça sem cabelo
ou beijo de língua de olhos fechados.

Eu fiz amizade com a tristeza,
os amores que perdi -
e sobretudo os que tive -
me ensinaram a não sonhar.
A intimidade
me permite chamar a melancolia
de mel
e a felicidade
de fel.

Meu rosto pálido
é invariavelmente sereno
diante de qualquer absurda calamidade
e meu coração, mesmo pequeno,
é tão forte que não chora
por alegria ou saudade.
E meus versos são, enfim,
sobre descobertas, nasceres, encontros
e as vezes todas que me despedi de mim.