domingo, 31 de janeiro de 2010

40 graus

Protegido pela película dos vidros
e pelas indevassáveis cortinas
me esparramo no tapete da sala,
ar condicionado no máximo.
Não há no mundo força capaz
de romper a resistência das teias
que detém qualquer movimento
dos meus músculos.
O que resta de meus alvéolos
busca preguiçosamente esse ar viciado.

Pernas pedalam na orla
camomilas douram cabelos
e sumários biquínis
sensualmente impedem
que o sol complete o seu trabalho.
O mar tempera com sal as formas
arredondadas e rijas
que convidam a matar.

O sedentário corpo
se rende à imaginação.
Não me arrisco a por os pés fora de casa
e o convite feito aos sentidos era R.S.V.P.
Meu corpo permanece estático
enquanto apenas os pensamentos gozam.
A loucura vence por W.O.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Gols

na casa dele, o sexo
era previsível.
duas vezes na semana,
como as rodadas
do campeonato brasileiro.
e ela nem gostava
de futebol.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

À outra

Na noite da tua partida -
coincidência -
abri um livro
que outro
dedica a você.
À outra com teu nome.
Li até acabar.
Acabou.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Irmandade

Do núcleo
surgem tentáculos
que assumem
a forma de gotas
até a partilha.
Cada um de nós é infeliz a seu modo.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O melhor de nós

Enquanto mato as horas da tarde na livraria,
me vem esta saudade aguda e doce.

Fomos tão anacrônicos, corajosos e ingênuos!
Fizemos o melhor de nós.
Perdemos tudo, exceto nossa história,
que as cores, os cheiros e as letras
destas páginas evocam.

Você foi quem mais me conheceu,
a única que realmente esteve ao meu lado,
admirada e temerosa da força
que até hoje não sei usar.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cada página

Comprei dois
exemplares do mesmo livro
para à noite lermos juntos,
embora cada qual na varanda possível
da sua casa, separados
por toda uma cidade cheia
de morros, ruas, carros e luzes.

Imagino você lendo a página quinze,
o poema poderia ser sobre nós.
Mas não é.
Nem nós sabemos
o que somos.
Sim, um verso nos une,
um verbo, uma carne.
Uma página nos une.
Se não estamos na primeira página,
tudo bem, eu não acredito
que um dia chegaremos a nossa última.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Morto amanhã

Amanhã tenho encontro
com a morte
ao nascer do dia
de sol forte.
O fato de saber não alivia.
Não estou pronto.
A tua saída pela porta
é o início da minha corrida
pela estrada torta.
O nosso desencontro,
tua muda despedida
dá fim a minha vida.
Sei bem como aproveitar
e quero mais que tudo
minhas últimas horas.
O que não há é futuro
depois que você for embora.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O dia perfeito

Você me aprisiona no eterno presente
da publicidade ou de um calendário estático.
O mesmo dia perfeito
se repete indefinidamente
e repele o futuro que nos pertenceria.
Vivemos da memória do hoje,
da hipótese da manhã que não chega.
Giramos num círculo de dois, giramos,
ciranda que não se move,
carrossel de vontades renovadas e irrealizadas.
Nuvem negra que o vento não sopra,
e nem deságua forte sobre nós.
Não brotam flores.
Você me mantém vivo, em suspensão
na exaustiva repetição do prazer no mesmo
dia perfeito, e da mesma
dor por um futuro rarefeito.





trilha sonora sugerida: "Perfect day", Lou Reed.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Meus guardados

Há muita coisa em meus guardados
que, confesso, não consegui achar.
Alhos e bugalhos.
Sem a presunção elitista
do trigo sobre o joio.
À luz do olho
é tudo parte
do que não consegui viver
e tentei aprisionar.
Lembranças a espetar
cruel e repetidamente
a memória do possível
que jamais ocorreu.

Escolhas

Sou apoteose dionisíaca
e só escolhi mulheres cartesianas.

Sou apóstolo da emoção
e amei como quem compra carros.

Sou o apocalipse da castidade
e preferi ter filhas a amantes.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Remoção

É com profunda e discreta alegria
que assisto ao teu corpo
ser guardado à terra.
Contribuí para isso.
Não tenho peso.
Ao avesso, estou leve.
Demoraste a partir,
a sair do meu caminho
como pedra.

Passou

O que foi amor
numa noite, ferido,
foi choro aflito.
Depois, foi grito,
soluço,
suspiro.
E então,
única lágrima
um pingo
uma gota
uma nota
no piano.
E passou,
como a chuva.
Um chuvisco.
Mero cisco.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Embarque


Estacion Retiro, Buenos Aires. Foto: Leandro Wirz.


Repasso batom vermelho
espero
bato o pé
até quase quebrar o salto.
Ele não vem
mas jurou que estava tudo bem.
Ele não avisa,
está quase na hora do trem.
Deve ter tido problema no trabalho
ou trânsito,
deve ter motivo para este atraso.
A mulher dele descobriu.
Será que ele desistiu?
Eu já cantei todas as músicas
de que eu sabia as letras,
eu já contei tudo que dava para contar
desde lâmpadas na estação
até quem segura o corrimão.
Ele não vem
mas eu não perco.
Liberdade é não ter nada a perder.
Eu embarco no último vagão
depois do terceiro sinal.
A porta se fecha só para quem fica de fora.
Para mim, está sempre aberta.
Eu vou para a minha califórnia.
Ele teve sua chance,
a minha, não deixo passar.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O que rola

Enfim, aderi ao Twitter. Inevitável. E o que vou fazer lá? Exercitar meu poder de síntese e nos regulamentares 140 caracteres espalhar versos soltos, aforismos, frases de efeito, truísmos tortos, comentários oportunos, piadinhas, poeminhas, microcontos, e, claro, anunciar textos novos publicados aqui ou lançados no meu outro blog, o mardecoisa.blogspot.com

Então, me acompanha lá também.

Eu sou novela.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A novidade

As palavras, esqueci.
Lembro, era muito bonito o que escrevi.
Perdi toda a minha história.
O timão, as cartas náuticas,
a bússola, nada governando a vida.
Nem faróis ocultos detrás das brumas.
Breu.
Estou feliz. Estou com medo.
Estou feliz. E agora, o que é isso?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Suspensão

Apaga a luz, abaixa o som,
eu quero mandar o mundo morrer,
que de vez em quando é bom.
Deixar correr
o rio, a lágrima, o sangue, o gozo.
Eu quero ficar parado no vento -
helicóptero, beija-flor -
contemplar meio distraído
o vôo e o pouso, solitário e livre.

Pendura a alma no cabide,
o corpo deixa no sofá.
Hoje eu não quero ser tigre
na selva de concreto,
eu não quero ver de perto,
nem provar que estou certo.
Quero ficar suspenso
no hiato atemporal do êxtase
e esquecer que carrego
mil momos nos ombros.