quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Lâmina do adeus

A lâmina do adeus
é a última página
da nossa história.
Faz pequeno
talho ardido
na ponta do dedo.
Você pode viver com a dádiva
das lembranças?
Você suporta o peso das lembranças?
Não temos mais o futuro.
Seremos apenas
o que poderíamos ter sido –
verbos conjugados no subjuntivo.

Leite

Acordo um olho de cada vez
começo meu dia com café,
mas podia ser vodka.
Acendo um cigarro,
as roupas de ontem ainda estão
espalhadas pela sala.
A noite foi boa,
a voz está rouca,
o corpo dói.
O que gosto mesmo
é dos meus dias não terem manhã.
E leite me faz mal.

Nas nuvens

Cabeça nas nuvens
pés no chão
tornam-me longo demais,
vasto demais,
vago demais.

Dentre minhas opções eu fico
com os pés nas nuvens
e a cabeça perdida nalguma estrela.
Eu serei mais feliz assim, livre
do futuro.
O que temos afinal?
O chão é varrido,
as nuvens viram chuva
e as estrelas todas caem.

Dentre minhas opções eu fico
com a que você me deixa, a única:
solidão.
Você é muito pra mim.
Vasta demais,
vaga demais.

Tento, mas não te alcanço.
Pés no chão,
pés no chão.
Teus pés, onde estou.

Instante

Quantos instantes na vida
explodem em magia e sentido?
Quando os olhos do outro
são espelho sem distorção?
Quando a vida pode acabar
porque atingiu a plenitude
e nem o fim é capaz
de roubar-lhe a eternidade?

Eu quero ser contemporâneo
dos meus sentimentos
perpetuamente.
Sem reparos sobre o que já passou,
sem dívidas a resgatar no que virá
e este presente
mal vivido, incompetente.

Eu quero o que não tive,
intenso, melhor ou pior,
com a ousada coragem da entrega.
Sou ao mesmo tempo – sempre o tempo! –
o abismo, a cobaia e a experiência.

sábado, 18 de outubro de 2008

O silêncio do lago

O silêncio dos lábios
se quebra com os verbos dos olhos,
estes lagos que guardam
segredos e desejos mais profundos
do que posso desvendar.
Molho o corpo, firmo no raso
e vou ao fundo
fascinado por cada revelação
e por todo o mistério
das tuas águas.

Canção pra te enaltecer

Teu riso branco de algodão
é espontâneo e insolente como as manhãs.
Teus expressivos olhos negros
ofertam novas verdades absolutas.
Teus cabelos como chuva sedosa
lavam toda ausência.
Tuas mãos pequenas e fortes
conduzem meu mundo.
Teu cheiro de eterno convite
espera única resposta.

O plebeu

Grafite em muro no Centro do Rio. Foto: Leandro Wirz



Não há nobreza maior

do que desdenhar a vingança.


Sinceramente,

eu quero que você se foda.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Bocas boas

Este poema veio de Francinne Amarante.
Achei estimulante, e, num rompante,
como se fosse repente, ainda tonto,
respondi de bate-pronto.

Tá tudo lá no blog Balaio Cultural em 09.10.2008



"mas se eu italiano ou argentino
me perco na língua portuguesa
minguo à silábica francesa
me rendo na boca brasileira"

Francinne Amarante




RESPOSTA À TUA BOCA...

E qual a boca que é a cara do Brasil,
minha poeta de nome francês?
É a boca boa, a boca que sorri à toa
escancarada e sem dente?
É a Boca do Lixo produzindo pornografia
mais sadia que a boca da urna política?
É a boca de fumo vendendo ilusão
e distribuindo bala perdida
como se fosse frumelo
em cada boca de criança
sem nome e com fome?
O que corre a boca pequena é que a boca
brasileira não tem comparação com a estrangeira
e é por isso que vem um monte de gringo
gozar forte dentro dessa boca livre.

domingo, 12 de outubro de 2008

Lado a lado

Tenho cinco sentidos cansados
e um sexto sentido
que agora não sente nada.
Eu sento e espero
um som que me desperte,
o tiro de partida
para que eu corra
nas raias da minha própria vida.
Se eu soubesse de você,
onde anda , o que faz,
te pediria um empurrão,
ou um abraço,
conforme a ocasião.
Te pediria pra ser minha cúmplice
e companheira de quarto.
Te pediria pra, de mãos dadas,
andar, correr ou voar
até o pódio de chegada,
pra eu não ter nunca mais que procurar
e ter sempre certeza de que já te encontrei.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

De repente

Piet Mondrian, Composition with Yellow, Blue, and Red, 1921, óleo sobre tela





Quero te dar um beijo de língua
de serpente

E fazer um Mondrian
com minha gilete em tua pele.

Escolhas

Sou apoteose dionisíaca
e só escolhi mulheres cartesianas.

Sou apóstolo da emoção
e amei como quem compra carros.

Sou o apocalipse da castidade
e preferi ter filhas a amantes.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Crime perfeito

Vamos ao lugar de costume
pelo caminho habitual,
sentamo-nos à nossa mesa,
pedimos o de sempre.
Pode me revistar, estou limpo.
Nada suspeito ao redor,
tudo nos seus devidos lugares,
nenhum movimento estranho.


Súbito, a lâmina nas minhas palavras
dilacera seu rosto além da carne.
Creia-me, algumas vezes
a crueldade é a maneira mais delicada
de se fazer o que tem que ser feito.